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Laurindo Vieira: A Perda Imensurável na Formação da Consciência Cívica Angolana

Laurindo Vieira: A Perda Imensurável na Formação da Consciência Cívica Angolana
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Partiu para a eternidade, não por vontade do tempo ou do corpo, um verdadeiro astro das ciências sociais em Angola, autor do livro “Angola: A dimensão ideológica da educação, 1975-1992”.

Homem de convicção clara, amante das teorias e exímio orador, Laurindo Vieira foi a epitomia do saber em intervenção social, debates, prelecções e entrevistas (Cara a Cara da TV Zimbo, Grande Entrevista da TPA e outras).

Devem estar recordados das lições que deu a David Mendes, no campo da ética. Ou deverão se recordar das suas alucussões recheadas de clássicos em eventos académicos, apelando para que houvesse sempre uma postura cívica de uma sociedade ética.

Conheci-o quando o trouxeram à universidade em que eu era Reitor para apresentar um outro grande sociólogo português. De poucas palavras em conversa solta, o Dr. Laurindo Vieira simplesmente indicou que tinha sido ultrapassado, uma vez que já se tinha lido a biografia do prelector quando se o tinha chamado a intervir. Este simples gesto de altruísmo (não queria roubar o show a alguém) o caracterizou. E foi na simplicidade que se notabilizou. Sempre capaz de discernir a árvore da floresta, o Psicológico-Sociólogo Angolano com formação docente tinha um sentido de propósito acima da média. Em debates e entrevistas, essa habilidade manifestava-se pela sua chamada de atenção para o que consubstanciava e/ou sustentava os eventos sociais, em muitos casos, a crise de valores, a fluidez das relações humanas e a ausência da ética em Angola, em seu entender informado.

Mas para além de ter uma visão ampla dos conteúdos dos debates e das entrevistas, Laurindo Vieira fazia algo pouco comum em intervenções de académicos angolanos - o enquadramento científico dos fenómenos, quer por citação de nomes como Descartes, Socrates e Kant, quer por referência a conceitos técnicos como o da heteronomia, provenientes da literatura ou as frases derivadas dos seus estudos como 'familias de duplo padrão', 'relações líquidas' ou o 'poder como algo consumível'. As pessoas gostam do poder, dizia ele.

Esta memória magnificente não acontecia por acaso. Provinha de contacto constante com a literatura, quer seja por meio da leitura de obras de grandes filósofos, quer por intermédio de estudos que citavam essa bibliografia rica em princípios e virtudes. Ou mesmo de estudos seus sobre a familia, o suicídio e outros temas sociais e psicológicos.

Com o seu assassinato em plena luz do dia, numa estrada altamente movimentada de Luanda, Angola perdeu em Janeiro de 2024 um grande homem do saber, alguém que ainda tinha muito para oferecer, nessa estrada da pacificação das almas e espíritos, assombrados por desigualdades, conflitos familiares, turbulências laborais, suicídios, violência, abuso, distracções políticas, ineficiências na gestão econômica e perda de humanidade, esta última tipificada pelo que Agostinho Neto disse sobre os abutres em África e José Eduardo reconheceu sobre o cabritismo em Angola.

Já não teremos alguém a falar com recurso a ciências sociais para responder perguntas sobre o quotidiano angolano.  Deixamos de ouvir os nomes das ciências que explicam os crimes em Luanda, a fome no país e a promiscuidade nascida da carência. Passaremos a falar desses fenómenos como de jogos falamos - com paixão temporária baseada em sentimentalismo que se esvazia, assim que um outro assunto se manifesta perante os nossos olhos secos de tanto chorar ou ouvidos surdos de tanto não sermos ouvidos. De reflexões profundas e cientificas, jamais falaremos. De convicções inalteráveis por aliciamentos políticos, ouviremos muito poucas. 

Aquelas alegorias de Laurindo Vieira deixarão de nos fazer lembrar da nossa moralidade. Talvez ele mesmo assim o dissesse - como ele, só ele.

Apesar de ter dado muito a esta sociedade, lamentavelmente, a mesma sociedade o falhou quando ele mais a precisava. Mostrou-se incompetente. Demorou a acudi-lo e se mostrou indiferente aos melianos que o almejaram, antes de se porem em fuga, mesmo até em sentido contrário ao tráfico. Ninguém se lembrou de estancar o sangue que jorrava da veia femoral ou ilíaca externa de Laurindo Vieira, estendido no local do assassinato, perto da sua viatura. Pior ainda, ninguém impediu que os meliantes escapassem, apesar de andarem em sentido contrário na rua directa do Patriota por alguns minutos, conforme mostram os vídeos a circularem nas redes sociais. O que faltou?

John Haddox diria que o papel da filosofia angolana de criar individuos eticamente conscientes das suas atribuições sociais e pessoais mostrou-se inexistente no dia em que os disparos foram feitos contra a perna de Laurindo Vieira. As pessoas que se aproximaram ao malogrado pediram-lhe primeiro que se deitasse. Depois lhe perguntaram se tinha seguro. Ninguém pensou em levantar a perna almejada acima do nivel do coração. Verdade seja dita, se a veia femoral foi atingida, ele tinha 7 minutos de vida. Neste caso, ele não deveria ter sido retirado do local. Os meios médicos deveriam o ter socorrido no local do acontecimento infausto. Talvez seja por isso que ele se focava em apanharem os melianos, enquanto se levantava para explicar. Mas os únicos verdadeiros culpados da sua morte foram os dois meliantes na motorizada de pequena cilindragem, com capacetes escamoteáveis, pouco comuns, não iguais aos mais baratos no mercado angolano.

Pelo esforço que fizeram em terem as caras ocultas pelos capacetes e a maneira agitada como fugiam, deve ser fácil inferir que tenha havido premeditação. Não se entende porque terão ficado indiferentes os agentes de segurança estacionados nas imediações. Talvez já tivessem todos entregue as suas armas de fogo à Policia Nacional.

Laurindo Vieira licenciou-se em Psicologia e Sociologia, no ISCED de Luanda, antes de concluir um Mestrado e um Doutoramento em ética, em Portugal. Foi Coordenador da Comissão Instaladora da Universidade de Luanda.

Nascido na provincia angolana do Uíge há 60 anos, o Psicológico-Sociólogo era Reitor da Universidade Gregório Semedo, por altura do sua morte prematura, na rua directa do Patriota, em Luanda. Que a sua memória perdure!

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João Canoquena

PhD (Segurança Rodoviária)

Partiu para a eternidade, não por vontade do tempo ou do corpo, um verdadeiro astro das ciências sociais em Angola, autor do livro “Angola: A dimensão ideológica da educação, 1975-1992”.

Homem de convicção clara, amante das teorias e exímio orador, Laurindo Vieira foi a epitomia do saber em intervenção social, debates, prelecções e entrevistas (Cara a Cara da TV Zimbo, Grande Entrevista da TPA e outras).

Devem estar recordados das lições que deu a David Mendes, no campo da ética. Ou deverão se recordar das suas alucussões recheadas de clássicos em eventos académicos, apelando para que houvesse sempre uma postura cívica de uma sociedade ética.

Conheci-o quando o trouxeram à universidade em que eu era Reitor para apresentar um outro grande sociólogo português. De poucas palavras em conversa solta, o Dr. Laurindo Vieira simplesmente indicou que tinha sido ultrapassado, uma vez que já se tinha lido a biografia do prelector quando se o tinha chamado a intervir. Este simples gesto de altruísmo (não queria roubar o show a alguém) o caracterizou. E foi na simplicidade que se notabilizou. Sempre capaz de discernir a árvore da floresta, o Psicológico-Sociólogo Angolano com formação docente tinha um sentido de propósito acima da média. Em debates e entrevistas, essa habilidade manifestava-se pela sua chamada de atenção para o que consubstanciava e/ou sustentava os eventos sociais, em muitos casos, a crise de valores, a fluidez das relações humanas e a ausência da ética em Angola, em seu entender informado.

Mas para além de ter uma visão ampla dos conteúdos dos debates e das entrevistas, Laurindo Vieira fazia algo pouco comum em intervenções de académicos angolanos - o enquadramento científico dos fenómenos, quer por citação de nomes como Descartes, Socrates e Kant, quer por referência a conceitos técnicos como o da heteronomia, provenientes da literatura ou as frases derivadas dos seus estudos como 'familias de duplo padrão', 'relações líquidas' ou o 'poder como algo consumível'. As pessoas gostam do poder, dizia ele.

Esta memória magnificente não acontecia por acaso. Provinha de contacto constante com a literatura, quer seja por meio da leitura de obras de grandes filósofos, quer por intermédio de estudos que citavam essa bibliografia rica em princípios e virtudes. Ou mesmo de estudos seus sobre a familia, o suicídio e outros temas sociais e psicológicos.

Com o seu assassinato em plena luz do dia, numa estrada altamente movimentada de Luanda, Angola perdeu em Janeiro de 2024 um grande homem do saber, alguém que ainda tinha muito para oferecer, nessa estrada da pacificação das almas e espíritos, assombrados por desigualdades, conflitos familiares, turbulências laborais, suicídios, violência, abuso, distracções políticas, ineficiências na gestão econômica e perda de humanidade, esta última tipificada pelo que Agostinho Neto disse sobre os abutres em África e José Eduardo reconheceu sobre o cabritismo em Angola.

Já não teremos alguém a falar com recurso a ciências sociais para responder perguntas sobre o quotidiano angolano.  Deixamos de ouvir os nomes das ciências que explicam os crimes em Luanda, a fome no país e a promiscuidade nascida da carência. Passaremos a falar desses fenómenos como de jogos falamos - com paixão temporária baseada em sentimentalismo que se esvazia, assim que um outro assunto se manifesta perante os nossos olhos secos de tanto chorar ou ouvidos surdos de tanto não sermos ouvidos. De reflexões profundas e cientificas, jamais falaremos. De convicções inalteráveis por aliciamentos políticos, ouviremos muito poucas. 

Aquelas alegorias de Laurindo Vieira deixarão de nos fazer lembrar da nossa moralidade. Talvez ele mesmo assim o dissesse - como ele, só ele.

Apesar de ter dado muito a esta sociedade, lamentavelmente, a mesma sociedade o falhou quando ele mais a precisava. Mostrou-se incompetente. Demorou a acudi-lo e se mostrou indiferente aos melianos que o almejaram, antes de se porem em fuga, mesmo até em sentido contrário ao tráfico. Ninguém se lembrou de estancar o sangue que jorrava da veia femoral ou ilíaca externa de Laurindo Vieira, estendido no local do assassinato, perto da sua viatura. Pior ainda, ninguém impediu que os meliantes escapassem, apesar de andarem em sentido contrário na rua directa do Patriota por alguns minutos, conforme mostram os vídeos a circularem nas redes sociais. O que faltou?

John Haddox diria que o papel da filosofia angolana de criar individuos eticamente conscientes das suas atribuições sociais e pessoais mostrou-se inexistente no dia em que os disparos foram feitos contra a perna de Laurindo Vieira. As pessoas que se aproximaram ao malogrado pediram-lhe primeiro que se deitasse. Depois lhe perguntaram se tinha seguro. Ninguém pensou em levantar a perna almejada acima do nivel do coração. Verdade seja dita, se a veia femoral foi atingida, ele tinha 7 minutos de vida. Neste caso, ele não deveria ter sido retirado do local. Os meios médicos deveriam o ter socorrido no local do acontecimento infausto. Talvez seja por isso que ele se focava em apanharem os melianos, enquanto se levantava para explicar. Mas os únicos verdadeiros culpados da sua morte foram os dois meliantes na motorizada de pequena cilindragem, com capacetes escamoteáveis, pouco comuns, não iguais aos mais baratos no mercado angolano.

Pelo esforço que fizeram em terem as caras ocultas pelos capacetes e a maneira agitada como fugiam, deve ser fácil inferir que tenha havido premeditação. Não se entende porque terão ficado indiferentes os agentes de segurança estacionados nas imediações. Talvez já tivessem todos entregue as suas armas de fogo à Policia Nacional.

Laurindo Vieira licenciou-se em Psicologia e Sociologia, no ISCED de Luanda, antes de concluir um Mestrado e um Doutoramento em ética, em Portugal. Foi Coordenador da Comissão Instaladora da Universidade de Luanda.

Nascido na provincia angolana do Uíge há 60 anos, o Psicológico-Sociólogo era Reitor da Universidade Gregório Semedo, por altura do sua morte prematura, na rua directa do Patriota, em Luanda. Que a sua memória perdure!

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